20 maio O que é fazer a vontade de Deus, hoje?
Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu… O que é fazer a vontade de Deus, hoje?
Não é possível desejar fazer a vontade divina sem conhecer, amar e seguir o mestre e Senhor e ser transformado pela graça em ser seu seguidor e discípulo!
Nas publicações anteriores da Revista São Judas Tadeu, foram enfocadas as duas primeiras petições, num total de sete do Pai Nosso, a “Oração Dominical Perfeitíssima”, como exprimiu magnificamente Santo Tomás de Aquino em sua Suma Teológica (STh II, II, q.83, a.9). Agora, temos a oportunidade de aprofundar a terceira petição: “Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu” (Mt 6, 10); e tentar relacioná-la ao nosso “hoje”, à nossa vida cotidiana, e identificar se o que pedimos em oração corresponde às atitudes e disposições pessoais.
A oração do Pai-nosso é fundamental para o cristão. Ela não é somente um ensino transmitido por Jesus, mas expressa e demonstra, sobretudo, sua relação com o Pai. É possível compreender o que Jesus transmitiu aos discípulos – e a nós chega pelo texto dos Evangelhos – é a sua experiência dialogal com o Pai. Olhando para Jesus compreendemos a sua relação com Pai no Espírito Santo. O que está contido na oração se revela como vínculo estreito entre o Pai e o Filho. Quando Jesus pediu que rezássemos a oração do Pai Nosso, ensinou aquilo que lhe era comum e intenso. Dali em diante, tanto para os discípulos que primeiro ouviram de Jesus, como a nós, se requer a disposição interior em orar ao Pai com a mesma proximidade, intensidade e abertura de coração sincero, atento e comprometido, como Jesus fazia!
Interessante essa terceira súplica! No clima de oração, recolhidos num momento íntimo de colóquio com o Pai nos despojamos de nossas vaidades, interesses e manias para, simplesmente, dizer que desejamos que a vontade Dele seja feita e não a nossa. Ora, isto quer dizer que nos colocamos em suas mãos e nos despojamos e desejamos que os desígnios de nosso Deus sejam realizados em nós.
Estamos dispostos de todo coração, de toda alma, de toda a energia a ter essa disposição?
É bom levar em consideração que fazer a vontade do Pai não quer dizer realizar um capricho divino, atender seus desejos e seus fins pessoais. De forma alguma o Senhor precisa de nossos favores e esforços para O agradar. Então, o que significa e qual o compromisso que será exigido a nós em fazer a vontade do Pai?
Antes de tudo, quando rezamos a oração do Pai Nosso e nos detemos na terceira petição, precisamos perceber que o Espírito Santo já produz em nós uma sabedoria que nos impele a abrir o coração, como ensina o Livro dos Provérbios: “Confia no Senhor com todo o teu coração, não te fies em tua própria inteligência” (Pr 3, 5). Isto é, durante o momento em que estamos diante do Senhor é preciso não nos apoiar em nós mesmos, em nossos próprios julgamentos, pois, assim, seremos insensatos. Mas, a pessoa humilde não deposita tudo em sua confiança. E essa disposição é a inclinação sensata que o Espírito Santo nos suscita a fazer a vontade de Deus.
Nesse sentido, o coração sincero e humilde que se dispõe a fazer a vontade divina, segue o caminho que fez Jesus: “Pois desci do céu não para fazer minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou” (Jo 6, 38).
Por isso, antes de tudo, precisamos aprender a viver a “vontade do Pai” e para isso o mestre é Jesus. Diz ele: “Pois desci do céu não para fazer minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou” (Jo 6, 38). Com Paulo aprendemos o propósito de escolher o que é melhor e mais elevado para a nossa vida, que vai além dos critérios deste mundo. Afirma o apóstolo: “E não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos, renovando a vossa mente, a fim de poderdes discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, agradável e perfeito” (Rm 12, 2).
Qual é a vontade do Pai afinal?
A vontade de Deus está envolvida nos limites de um amor imenso pela humanidade, pois entregou o Filho unigênito para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). Portanto, a vontade do Pai é que ninguém se perca e que todos sejam salvos (cf. Mt 18, 14; 1Tm 2, 4).
Deus, embora viva por si mesmo e não precise de nossa companhia, quis nos atrair a si e “dar a conhecer o mistério de sua vontade (cf. Ef 1,9), mediante a qual os homens, por meio de Cristo, Verbo encarnado, tem acesso no Espírito Santo ao Pai e se tornam participantes da natureza divina” (DV 2). E, ainda, “quis Deus manifestar e comunicar a sua pessoa e os decretos eternos da sua vontade a respeito da salvação dos homens, ‘para os fazer participar dos bens divinos, que superam absolutamente a capacidade da inteligência humana’” (DV 6).
A frase: “seja feita a vossa vontade” pode soar como um descompromisso nosso, porque tudo será realizado e do jeito que Deus assim quer e nós não precisamos nos envolver. Pedir ao Pai que a vontade dele seja feita não nos torna um crente passivo que espera que Deus realize coisas no mundo que nos beneficie; que realize a sua vontade aqui e no céu para que possamos chegar lá com tudo pronto e arrumado. Mas, o sentido desse pedido diz respeito ao pessoal, a mim. Peço que a vontade do Pai se realize em mim. Esse pedido é um ato de fé e confiança de que a vontade de Deus se realize e se cumpra em mim.
Se a nossa decisão for a de fazer a vontade do Pai, nós já estaremos direcionados no rumo certo para a vida. Quando a nossa vontade estiver em sintonia com a vontade de Deus, será um encantamento, graças a Deus. Mas, é preciso consciência, pois, em vários momentos a vontade de Deus vai nos incomodar. O que pensamos e esperamos, os nossos caprichos e desejos, entrarão em confronto com o que o Pai espera de nós. É preciso, por isso mesmo, sintonizar a vontade do coração com a vontade divina. Alinhadas, então, revelam o DNA do agir cotidiano em todas as circunstâncias da vida do cristão. É certo que em vários momentos da nossa existência humana será fundamental a perseverança e o esforço para deixarmos ser tocados pela vontade divina, para que a liberdade de nossos pensamentos e do coração não se tornem opositores ao caminho que Deus nos convida a seguir. Sabemos que o caminho é exigente, mas, com a adesão firme e convicta da fé ao propósito do Reino de Deus, a nossa alegria será plena (cf. Jo 15, 11).
Vale mencionar o testemunho que Santo Agostinho (354-430) nos legou em forma de “Confissões” (livro escrito provavelmente entre 397 e 398). Um emocionante relato de como ele superou a tensão, quase insuportável, entre a vida pervertida de paixões que o aprisionava e o impedia de combater nas fileiras do Senhor e aderir a “nova vontade” de servir a Cristo. Assim Agostinho (1984, p. 211) se expressou: “Tinha duas vontades, uma antiga, outra nova; uma carnal, outra espiritual, que se combatiam mutuamente; e essa rivalidade me dilacerava o espírito”.
A tensão de fazer a vontade de Deus que confronta com a nossa vontade é pertinente na medida de nossa razão e livre arbítrio. Muitas vezes o que Deus espera de nós entra em choque com as nossas ideias e expectativas. Paulo revela toda a sua dedicação e vontade absurda de cumprir a sua missão evangelizadora: “Ai de mim se eu não anunciar o Evangelho” (1Cor 9, 16). No entanto, o seu confronto em cumprir o que dele esperava Jesus, quanto a propagar o Evangelho, e tudo que isso traz de consequências, o incomodava tal qual um espinho que lhe feria a carne. De certo, Paulo gostaria, antes de tudo, que não fosse espinho o que mais o atingia, mas, uma rosa perfumada a lhe impregnar a vida. Ao reconhecer sua fraqueza, daquilo que possivelmente se entendia em Paulo como sendo uma prova, um teste, com obstáculos que se opunham à pregação do Evangelho, o apóstolo dos gentios se reconhecia dependente da graça de Deus para persistir e não desistir da evangelização. De Paulo vem um dos exemplos mais notórios do que é fazer a vontade do Pai.
Se o ser humano sofre pela decisão de fazer a vontade de Deus, para Jesus foi preciso suar sangue para superar a angústia de não se deixar cair antes de completar a sua missão e fazer a vontade do Pai. Olhemos para a cena no Horto das Oliveiras, quando Jesus num momento de tristeza, diante do sofrimento que estava por vir, expõe ao Pai seu incômodo, o seu desejo natural de postergar ou se livrar das consequências de sua missão, porém a força do amor que ardia em seu coração pelo Pai e pela humanidade, e o compromisso humilde para com o plano de Deus, fez com que ele reprimisse a fraqueza humana nele e aceitasse submeter-se à vontade do Pai. Disse Jesus: “Pai, se esta taça não pode passar sem que eu a beba, seja feita a tua vontade!” (Mt 26, 42).
Mediante as circunstâncias da vida que se apresentam, o nosso pedido ao Pai é de que a nossa vontade não seja prevalente, mas que nos unamos ao seu Filho e possamos aprender dele a fazer a vontade de Deus em nosso contexto existencial.
De Maria, a mãe de Jesus e dos Santos todos, São Judas Tadeu, temos o testemunho de tal atitude. Eles, no seguimento radical de Jesus, na perseverança da oração e no propósito de uma opção fundamental de vida unida ao Senhor, podem nos ensinar como devemos estar também juntos com Cristo e seguir os seus passos cumprindo a vontade do Pai, como Jesus sempre o fez.
O pedido de que seja feita a vontade do Pai, implica em um compromisso que não pode ser tratado de qualquer maneira ou pouco importante, pois, “nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino dos Céus, mas sim aquele que pratica a vontade de meu Pai que está nos Céus […], porque aquele que fizer a vontade de meu Pai que está nos Céus, esse é meu irmão, irmã e mãe” (Mt 7, 2; 12, 50).
Jesus revelou que o Pai deseja que a sua criatura predileta esteja em comunhão com ele e chegue à vida eterna. Mas é preciso uma força adicional, “a graça”, que vem do amor de Deus por nós: a presença e o agir divino aos que o buscam pela fé. A vontade do Pai se confirma em nós pela graça de buscarmos os bens eternos e elevados. Por essa idéia, Agostinho nos auxilia ao comparar o cântico velho com o cântico novo. Escreve o Bispo de Hipona (ANTOLOGIA LITÚRGICA, 2003, p. 780): “Todo o que ama as coisas terrenas canta o cântico velho. Quem quiser cantar o cântico novo, ame os bens eternos. O próprio amor é novo e eterno [..]. Cristo é a vida eterna. Ele é eterno com o Pai… Todos os que se renovam em Cristo para começarem a pertencer à vida eterna, cantam o cântico novo…”
O chamado que hoje recebemos para fazer a vontade do Pai não se esgota, pois todo aquele que crer no Filho e na sua Palavra, será salvo; e os efeitos da vontade de Deus que se realiza, não apenas em nós, mas em toda a terra, é que nela “seja banido o erro, nela reine a verdade, o vício seja destruído, a virtude floresça novamente, e que a terra não mais seja diferente do céu” (CIC 2825).
Fazer a vontade do Pai, por fim, requer uma profunda transformação de coração. Transformar o coração requer conhecer Jesus e fazer parte da vida dele, nos renovando nele. Não é possível desejar fazer a vontade divina sem conhecer, amar e seguir o mestre e Senhor e ser transformado pela graça em ser seu seguidor e discípulo. Por isso, Deus quer que sejamos transformados e que nossas atitudes e pensamentos passem por Jesus, como ele ensinou: “Deveis ser perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5, 48). Que a cada obra que se dispuser a realizar: material ou espiritual, seja realizada na graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, por quem o Pai enviou para ensinar e abrir o caminho para a vida eterna e a salvação.
Sami N. Abraão – teólogo, catequista de Adultos na Paróquia/Santuário São Judas Tadeu
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